A saúde dos filhos começa no útero… mas quem é responsabilizado por isso?
Nas últimas décadas, uma revolução silenciosa tomou conta da medicina e da saúde pública: a ideia de que muitas doenças da vida adulta têm origem antes mesmo do nascimento. Esse paradigma, conhecido como DOHaD – Developmental Origins of Health and Disease –, trouxe avanços importantes na compreensão de como o ambiente gestacional impacta o desenvolvimento fetal e a saúde ao longo da vida. No entanto, junto com as descobertas, veio também uma pergunta incômoda: será que estamos culpando as mães por tudo?
Uma nova frente de investigação crítica no NUPAGE a partir de estudos epidemiológicos brasileiros, joga luz sobre essa questão. Focando no fumo durante a gestação, João Paulo Gugliotti, Paola Mosquera e Alícia Matijasevich analisam como a figura materna tem sido centralizada como a principal (e muitas vezes única) responsável por uma série de desfechos adversos na saúde dos filhos, como obesidade, problemas mentais e dificuldades de desenvolvimento. E o mais preocupante: isso tem acontecido com pouca ou nenhuma consideração pelos contextos sociais, econômicos e familiares dessas mulheres.
Os achados – e o paper vindouro – revela(m) que, apesar da importância do tema, há uma insistente tendência da literatura científica em individualizar riscos — e responsabilizar condutas maternas — sem considerar determinantes estruturais como pobreza, desigualdade racial, falta de acesso à saúde ou ausência de rede de apoio. Raramente o pai é mencionado. Outras figuras familiares? Menos ainda. É como se o útero fosse um espaço isolado do mundo, e a gestante, uma ilha de decisões pessoais.
A crítica que emerge da pesquisa é incisiva: ao mesmo tempo em que se valoriza o papel do ambiente intrauterino na saúde futura, corre-se o risco de reforçar um tipo de "maternalismo científico", que moraliza comportamentos e obscurece responsabilidades coletivas. Como consequência, políticas públicas e recomendações clínicas acabam mirando em condutas individuais — "pare de fumar", "coma melhor", "amamente mais" — sem tocar nas condições sociais que tornam essas condutas possíveis ou impossíveis.
A proposta dos/as pesquisadores/as vai além de uma simples crítica. Eles/as sugerem uma reorientação da epidemiologia e das políticas de saúde: incluir os pais, ampliar o foco para redes de apoio, incorporar variáveis como moradia, renda, trabalho e raça/cor, e romper com a lógica de vigilância moral sobre os corpos femininos.
No fim das contas, a pergunta que ecoa é: de quem é a responsabilidade pela saúde das futuras gerações? Da mãe isolada ou de uma sociedade inteira?
Se quisermos uma ciência realmente transformadora, precisamos mudar o foco: das mães para o mundo ao redor delas.
em breve na biblioteca do NUPAGE!