Illness is the night-side of life, a more onerous citizenship. Everyone who is born holds dual citizenship, in the kingdom of the well and in the kingdom of the sick. Although we all prefer to use only the good passport, sooner or later each of us is obliged, at least for a spell, to identify ourselves as citizens of that other place.
— Susan Sontag, 1989:3. In.: "Illness as Metaphor and AIDS and its Metaphors."

m 2020, o mundo assistiu ao avanço avassalador da pandemia de COVID-19. Enquanto cidades inteiras silenciavam sob o peso do medo, do isolamento e da incerteza, um grito coletivo ecoava pelas ruas dos Estados Unidos: "I can’t breathe." Foi nesse cenário tenso e sobreposto de crise sanitária e convulsão social que nasceu o projeto Pandemic Cities, uma potente documentação fotográfica e urbana idealizada por João Paulo Gugliotti.

Baseado em Boston, Gugliotti começou a registrar, de forma espontânea, os efeitos da pandemia nos espaços comuns de três metrópoles marcadas pela alta densidade populacional: Boston, Nova York e São Paulo. O projeto teve início nos primeiros meses de 2020, mas ganhou contornos ainda mais marcantes a partir de maio daquele ano, quando os Estados Unidos se viram tomados por uma onda de protestos antirracistas após o assassinato de George Perry Floyd por um policial branco em Minneapolis.

As fotografias de Pandemic Cities não apenas capturam o vazio urbano ou a reorganização espacial provocada pela crise sanitária. Elas testemunham uma cidade em ebulição, rasgada por desigualdades estruturais, por lutos sobrepostos, e pela urgência da justiça social. As ruas, ao mesmo tempo em que se esvaziam pelo vírus, se preenchem com corpos em marcha — denunciando o racismo sistêmico, o autoritarismo policial e as falhas brutais do modelo urbano neoliberal diante de múltiplas crises.

A cidade como corpo adoecido

O nome Pandemic Cities é mais do que descritivo — é metáfora e provocação. Ele articula os sentidos de “adoecimento” e “cidade” para pensar como sociedades urbanas, especialmente desiguais, enfrentam as crises sanitárias e os abismos sociais que elas revelam.

A escolha do título também faz referência ao romance Hollow City (2014), continuação da obra Miss Peregrine's Home for Peculiar Children, de Ransom Riggs, que retrata mundos fantásticos habitados por seres “peculiares” e deslocados. De forma simbólica, Gugliotti associa esse universo fictício ao sentimento de estranhamento coletivo vivido nas metrópoles durante a pandemia, onde tudo se tornou instável, irreal, e, ao mesmo tempo, intensamente real.

Além disso, o projeto dialoga com a tradição da fotografia militante e memorial, inspirando-se em trabalhos como Until That Last Breath! (final dos anos 1980), da fotógrafa, ativista e feminista norte-americana Ann P. Meredith, que documentou a vida de mulheres com HIV/AIDS durante a explosão daquela epidemia. Em ambos os casos, o foco está nas marcas subjetivas, políticas e sociais deixadas pela doença — mais do que em suas estatísticas.

Reconhecimento e memória coletiva

Em 2023, Pandemic Cities recebeu menção honrosa da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), na categoria Ensaio Fotográfico do Prêmio Ana Maria Galano. A premiação reconheceu não apenas a qualidade estética do trabalho, mas sua relevância como documento histórico, sensível às intersecções entre pandemia, cidade, desigualdade e resistência.

O projeto nos convida a refletir sobre como vivemos, ocupamos e transformamos os espaços urbanos em tempos de colapso. Em vez de imagens higienizadas ou espetaculares, Gugliotti oferece um olhar cotidiano e poético, que nos confronta com a dor e a potência que emergem dos momentos de crise.

Um acervo para o presente e para o futuro

Ao revisitar Pandemic Cities, não olhamos apenas para o passado recente — olhamos para as camadas profundas que formam a experiência urbana contemporânea. O projeto se torna, assim, um importante acervo de memória e resistência, atravessado por questões raciais, de classe, de gênero e de território.

A pandemia, afinal, não foi apenas uma emergência sanitária: foi e continua sendo um espelho das estruturas sociais que sustentam (e adoecem) nossas cidades. Pandemic Cities nos ajuda a lembrar disso, com a delicadeza e a força de quem escolhe documentar o presente para ressignificar o futuro.

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