Entre o cuidado e a culpa: como a epidemia de HIV/AIDS moldou uma mãe ideal nas campanhas de saúde pública

Nos anos 1980 e 1990, enquanto o mundo enfrentava uma das mais graves epidemias da história contemporânea, se consolidava nas entrelinhas das campanhas de prevenção ao HIV/AIDS: a figura da mulher-mãe como agente central — e frequentemente solitário — do cuidado, da vigilância e da responsabilidade pela saúde de si e de outros.

Em “Preventing AIDS, producing mothers: a sociological reading of HIV/AIDS posters aimed at women in the 1980s and 1990s”, João Paulo Gugliotti e Lilia Blima Schraiber examinam como as campanhas veiculadas nos Estados Unidos nesse período, muitas delas reproduzidas ou influentes em outros países, construíram representações altamente moralizadas da mulher. Essas campanhas não apenas informavam — elas educavam moralmente, estabelecendo padrões de conduta, colocando a maternidade como imperativo e o corpo feminino como lugar de risco e culpa.

As imagens eram fortes: bebês sorridentes com frases como "ela tem os olhos do pai... e a AIDS da mãe". Ou ainda, mulheres negras em destaque, narrando histórias de dor, dependência química e arrependimento, muitas vezes com o bebê ao lado como símbolo da consequência. Em todos esses casos, um padrão se repete: o risco é maternal, a culpa é da mãe, a ausência do pai é naturalizada.

Esse tipo de representação não é neutro. Como nos ensina Stuart Hall, toda imagem carrega sentidos construídos social e ideologicamente. Campanhas como essas não apenas informam, mas produzem realidades sociais. Elas modelam o que se espera da mulher — especialmente da mulher negra, pobre, usuária de drogas ou soropositiva: que cuide, que se sacrifique, que seja prudente, que evite o prazer, que vigie a si mesma e aos outros.

A análise mostra como seis dimensões se repetem nessas peças: conselho, autonomia (ou sua falta), cuidado, culpa, prazer (quase sempre ausente) e apoio social (quase sempre restrito). Mais do que informar, essas campanhas colocavam a mulher como responsável por prevenir uma “geração AIDS”. E, ao fazer isso, eclipsavam discussões centrais como acesso à saúde, violência de gênero, racismo estrutural, ausência de políticas públicas e negligência estatal.

É importante lembrar: a maioria das campanhas não dizia diretamente “a culpa é sua”. Mas usava estratégias visuais e narrativas que deixavam essa mensagem implícita. Como na imagem da mulher que descobre que tem HIV quando o bebê nasce infectado: a cena é de dor, mas o recado é de julgamento.

Esse tipo de abordagem ecoa outras construções sociais em torno da maternidade, especialmente nos contextos de vulnerabilidade: a mãe como fonte de risco, como elo frágil, como sujeito a ser controlado. Isso se articula com um processo que estudiosas como Sarah Richardson e Sarah Hrdy chamaram de medicalização do cuidado e epistemologia da culpa: quando a ciência e a saúde pública passam a ver a maternidade não como direito, mas como responsabilidade absoluta — e, muitas vezes, passível de punição simbólica.

O artigo propõe uma mudança de rota. Uma comunicação em saúde que seja ética, inclusiva e eficaz deve:

  • Tratar a prevenção como um direito, não um dever moral;

  • Reconhecer que mulheres não são “vetores” de risco, mas sujeitas com contextos e histórias;

  • Incluir redes de apoio e corresponsabilidade (onde estão os pais? os serviços de saúde? o Estado?);

  • Considerar gênero, raça, classe, território e violências como determinantes sociais de saúde.

Se queremos campanhas que realmente previnam e promovam a saúde, precisamos abandonar o modelo da mãe ideal e submissa, e construir um novo imaginário: o da mulher como sujeito pleno de direitos — inclusive o direito ao prazer, à escolha, ao cuidado e à não culpa.


em breve na BMC/Archives of Public Health!

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